Ao longo dos anos, consequência da evolução da sociedade, existe uma série de fenómenos que têm vindo a ganhar um maior destaque, como é o caso da procriação medicamente assistida e dos casais compostos por mulheres e o consequente desejo de ter um filho.
Neste sentido, os casais de mulheres sofrem de desafios acrescidos quando em comparação com os casais heterossexuais, obrigando-os a ser “criativos” para alcançar o seu grande sonho - alcançar a parentalidade.
O desejo de ter um filho é um fenómeno complexo per se, envolto em inúmeros desafios e que resulta de um desenvolvimento pessoal com múltiplos fatores, independente do sexo e do género, estratificação socioeconómica e cultural, constituindo-se como uma etapa importante pós estruturação do casal para que possam aumentar a família. Entre as tentativas de adoção, inseminações caseiras e tentativas de acesso a técnicas de Procriação Medicamente Assistidas (PMA) noutros países, a construção de família para os casais compostos por mulheres sempre foi um desafio acrescido.
A crescente diversidade familiar, o avanço da ciência e as conquistas ao nível dos direitos das minorias sexuais, culminaram em importantes transformações no que diz respeito ao acesso a estruturas sociais diversificadas, mas também proporcionam uma sensação de segurança e de proteção, que nem sempre está assegurada.
Em Portugal, foi com a publicação da lei n.17/2016, de 20/06, que todas as mulheres, independentemente do estado civil e orientação sexual, passaram a ter acesso aos tratamentos de PMA (art.º 6.º). Contudo, não basta uma lei para mudar mentalidades nem o modo como olhamos para estas questões e, apesar de Portugal ser, de facto, progressista nestas matérias, será que existem estruturas realmente preparadas para responder a esta realidade e necessidade?
Para as mulheres que se encontram neste processo e excluindo, desde já, a existência ou não de problemas de fertilidade (que por si só acarretam níveis elevados de sofrimento emocional e/ou psicológico), a vivência do processo é, muitas vezes, descrita como desafiadora, exaustiva e esgotante sob vários pontos de vista. Não obstante, a tentativa de conceção exige a tomada de decisões bastante complexas. Por conseguinte, optar por um serviço público é um processo moroso (em 2021, o tempo médio de espera rondava os três anos, tendo havido pouca ou nenhuma melhoria até então). Tal deve-se não só ao aumento da procura, mas também ao facto de o banco público de gâmetas apresentar dificuldades na angariação de dadores.
Relativamente à seleção do dador, no serviço público, esta encontra-se limitada às características físicas das mães, não havendo envolvimento das mesmas nessa escolha. Por outro lado, optar pelo serviço privado oferece uma multiplicidade de opções personalizadas, mas requer um esforço financeiro que muitas mulheres não têm capacidade de suportar.
Vivendo nós num contexto social que muitas vezes não reconhece a identidade sexual e a estrutura familiar destas mulheres, quem é que protege os seus direitos? Muitas mulheres optam por não partilhar com ninguém que estão neste projeto e são muitas as vezes que procuram estes serviços sozinhas, de forma a não correrem o risco de lhes ser negada a oportunidade de realizar os tratamentos. Por vezes, é-lhes preferível viverem experiências de heterossexismo (assumir que a heterossexualidade é a norma na sociedade), de lesbofobia (preconceito e discriminação contra mulheres lésbicas) e bifobia (aversão ou a discriminação contra bissexuais), por parte dos prestadores de cuidados de saúde em detrimento de não realizarem o seu sonho. Vivenciam, então, um processo invisível e solitário quando se encontram num momento de elevada vulnerabilidade, em acréscimo ao facto de inúmeras vezes viverem escondidas da sociedade, da família, dos amigos e colegas de trabalho, o que tem um grande impacto na sua saúde psicológica. A expectativa de viver discriminação é, por si só, um fator de risco para a saúde psicológica. Como resultado, estas mulheres podem experienciar distress psicológico, sintomatologia depressiva e/ou ansiosa, baixa satisfação relativamente ao suporte social e na relação com os outros, conduzindo ao isolamento social.
A compreensão da vivência destes processos por casais de mulheres é importante, não só para que os profissionais de saúde compreendam quais as suas necessidades, mas para que possam proporcionar o apoio necessário e mais bem-adaptado.
Não podemos continuar a fazer de conta que estamos a falar de uma realidade igual para todos. São necessárias mais respostas, maior sensibilização e formação dos profissionais de saúde para estas matérias, maior envolvimento e acompanhamento por parte de profissionais de saúde mental, sendo impreterível dar voz e espaço a estas mulheres.
O direito, a ciência, as tecnologias continuam a avançar e a transformar-se de forma radical, indo além daquilo que alguma vez consideramos possível, mas até quando iremos continuar a fechar os olhos e ficar aquém das respostas necessárias?
Joana Caldas
Psicóloga na Clínica de Fertilidade Ferticentro
(Artigo para o Jornal Público)